Olá leitores, vou inaugurar
um tipo de post diferente hoje. Todas as vezes que eu gostar muito
de algum fragmento de um livro, irei compartilhá-lo aqui com vocês.
Existem coisas que valem a pena serem lidas, e por isso preciso reproduzir este
incrível capítulo de Garota
Exemplar, da brilhante Gillian
Flynn aqui.
Se eu pudesse andava com
esse texto grudado na testa, e saía por aí distribuindo ele impresso em
panfletos. (hahaha achou um exagero?)
Bem, a verdade é que eu e a
maioria das mulheres concordam com o que a Amy (protagonista do livro) diz
neste capítulo. Eu jamais conseguiria me expressar melhor. É uma crítica
perfeita ao padrão de comportamento cobrado e reproduzido por milhares de
mulheres que nem ao menos se dão conta das ações alienadas em massa. Existe
ainda uma crítica implícita sobre os relacionamentos, e personalidades
"padrão". (Não vou dizer que concordo com absolutamente cada palavra
da personagem, porém a ideia central do monólogo me representa sim, e também a
muitas outras mulheres)
Espero que gostem! Para quem
não leu o livro e só viu o filme, o texto na íntegra é muito mais crítico e
denso que o narrado nas telas. E para quem não tem interesse na história,
independentemente leiam, compartilhem. Este capítulo é no mínimo interessante.
“[...] Eu estava fingindo,
como muitas vezes fazia, fingindo ter uma personalidade. Não consigo evitar,
foi o que sempre fiz: assim como algumas mulheres trocam de estilo
regularmente, eu troco de personalidade. Qual persona parece boa, qual é
cobiçada, qual está em voga? Acho que a maioria das pessoas faz isso, apenas
não admite, ou se acomoda em uma persona porque é preguiçosa ou burra demais
para mudar.
Naquela noite da festa no
Brooklyn eu estava interpretando a garota que tem estilo, a garota que um homem
como Nick quer: a Garota Legal.
Os homens sempre dizem isso como o elogio definidor, não é? Ela é uma garota
legal. Ser a Garota Legal significa que eu sou uma mulher gostosa, brilhante,
divertida, que adora futebol, pôquer, piadas indecentes e arrotos, que joga
vídeo game, bebe cerveja barata, adora ménage à trois e sexo anal e enfia
cachorros-quentes e hambúrgueres na boca como se fosse anfitriã da maior orgia
gastronômica do mundo ao mesmo tempo em que de alguma forma mantém um manequim
36, porque Garotas Legais são acima de tudo gostosas. Gostosas e
compreensivas. Garotas Legais nunca ficam com raiva. Apenas sorriem de uma
forma desapontada e amorosa e deixam seus homens fazerem o que quiserem. Vá em
frente, me sacaneie, não ligo, sou a Garota Legal.
Os homens realmente acham
que essa garota existe. Talvez se deixem enganar porque muitas mulheres estão
dispostas a fingir ser essa garota. Durante muito tempo a Garota Legal me
ofendeu. Eu costumava ver homens — amigos, colegas de trabalho, estranhos —
babarem por essas medonhas mulheres fingidas, e eu queria sentar com esses
homens e dizer calmamente: Você não está saindo com uma mulher, você está
saindo com uma mulher que viu filmes demais escritos por homens socialmente estranhos
que gostariam de acreditar que esse tipo de mulher existe e poderia beijá-los.
Tinha vontade de agarrar o pobre coitado pela lapela ou mochila e dizer: A
piranha na verdade não gosta tanto de cachorros-quentes com chili — ninguém
gosta tanto de cachorros-quentes com chili! E as Garotas Legais são ainda mais
patéticas: elas nem sequer fingem ser a mulher que querem ser, fingem ser a
mulher que um homem quer que elas sejam. Ah, e se você não é uma Garota Legal,
imploro que você não acredite que seu homem não quer a Garota Legal. Pode ser
uma versão ligeiramente diferente — talvez ele seja vegetariano, então a Garota
Legal adora carne de soja e é ótima com cachorros; ou talvez seja um artista de
vanguarda, de modo que a Garota Legal é uma nerd tatuada e de óculos que adora
revistas em quadrinhos. Há variações na fachada, mas, acredite em mim, ele quer
a Garota Legal, que é basicamente a garota que gosta das mesmas merdas que ele
e nunca reclama. (Como você sabe que não é a Garota Legal? Porque ele diz coisas
como “gosto de mulheres fortes”. Se ele diz isso a você, em algum momento irá
trepar com outra. Porque “gosto de mulheres fortes” é código para “odeio
mulheres fortes”.) Esperei pacientemente — anos — para que o pêndulo oscilasse
para o outro lado, para que os homens começassem a ler Jane Austen, aprendessem
a tricotar, fingissem amar a revista Cosmopolitan, organizassem festas de
scrapbooks e dessem uns amassos entre si enquanto nós assistíamos, babando. E
então diríamos: É, ele é um
Cara Legal.
Mas isso nunca aconteceu. Em
vez disso, mulheres de todos os Estados Unidos conspiraram para nossa
degradação! Em pouco tempo a Garota Legal se tornou a garota-padrão. Os homens
acreditaram que ela existia — não era apenas uma garota dos sonhos em um milhão.
Toda garota tinha que ser essa garota, e, se você não era, então havia algo de
errado com você.
Mas é tentador ser a Garota
Legal. Para alguém como eu, que gosta de vencer, é tentador querer ser a garota
que todo cara deseja. [...]
Não posso dizer que não
gostei de parte daquilo: comi biscoitos recheados de marshmallow, andei
descalça, parei de me preocupar. Assisti a filmes idiotas e comi comidas cheias
de aditivos químicos. Não pensei dois lances à frente em relação a tudo, esse
foi o segredo. Bebia uma coca e não me preocupava em como reciclar a lata ou
com o ácido fermentando em minha barriga, um ácido tão forte que era capaz de
limpar uma moeda. Assistíamos a um filme idiota e eu não me preocupava com o
sexismo ofensivo ou a falta de minorias nos papéis principais. Nem sequer me
preocupava se o filme fazia sentido. Não me preocupava com nada que vinha
depois. Nada tinha consequência, eu estava vivendo o momento, e podia sentir
que ficava mais superficial e burra. Mas também feliz. [...]
Provavelmente fui mais feliz
naqueles poucos anos — fingindo ser outra pessoa — do que jamais fui antes ou
depois. Não consigo decidir o que isso significa.
Mas aquilo tinha de
terminar, porque não era real, não era eu. Não era eu, Nick! Achei que você
soubesse. Achei que fosse uma brincadeira. Achei que fosse um jogo implícito de
piscadelas, de não pergunte, não diga. Tentei muito ser relaxada. Mas era
insustentável. E na verdade ele também acabou não conseguindo sustentar o lado
dele: as provocações inteligentes, os jogos espertos, o romance, o galanteio.
Tudo começou a implodir. Odiei Nick por ficar surpreso quando me tornei eu.
Odiei-o por não saber que aquilo tinha de terminar, por realmente acreditar que
havia se casado com essa criatura, esse fruto da imaginação de um milhão de
homens masturbadores, com dedos cobertos de sêmen. Ele realmente pareceu
chocado quando pedi que me escutasse.
Não conseguiu acreditar que eu não adorava depilar minha boceta com cera e
pagar boquete quando solicitado. Que eu me importava, sim, quando ele não aparecia
para os drinques com meus amigos. Aquela grotesca anotação em diário? Eu não preciso de patéticas cenas
de macacos amestrados para repetir para minhas amigas; fico satisfeita deixando
que ele seja ele mesmo.
Aquilo era pura baboseira de
Garota Legal burra. Que estúpida do caralho. Mais uma vez, não entendo: se você
deixa um homem desmarcar compromissos ou se recusar a fazer coisas para você,
você perde. Não consegue o
que quer. É evidente. Sim, ele pode ficar feliz, pode dizer que você é a garota mais legal que já
existiu, mas está dizendo isso porque conseguiu o que ele queria. Está chamando
você de Garota Legal para enganar você! É o que os homens fazem: tentam dar a
impressão de que você é a Garota Legal para que faça as vontades deles. Como um
vendedor de automóveis dizendo Quanto
quer pagar por esta belezinha? quando você ainda não concordou em
comprá-la. Aquela frase medonha que os homens usam: “Quer dizer, sei que você
não se importaria se eu...” Sim,
eu me importo. Simplesmente diga isso. Não perca, sua imbecil de merda.
Então
aquilo tinha de parar. Entregar-me a Nick,
me sentir segura com Nick, ser feliz com Nick me fez perceber que havia uma Amy
Real ali dentro, e ela era muito melhor, mais interessante, complexa e
desafiadora do que a Amy Legal [...] “